Um Acórdão excelente

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A história conta-se em poucas linhas: J. e M. (iniciais de nomes fictícios) divorciaram-se. Com o processo de divórcio houve que acordar quanto às responsabilidades parentais dos progenitores relativamente à filha F., agora com 12 anos mas com 10 aquando do divórcio.
Os progenitores não chegaram a acordo, tendo o Tribunal de Família e Menores de S. suprido a sua falta ao abrigo do artigo 157.º da Organização Tutelar de Menores. O tribunal decidiu as questões normais, como a residência, os alimentos e o regime de visitas, mas acrescentou uma imposição sobre matéria que não havia sido suscitada no divórcio. No regime de exercício das responsabilidades parentais que o tribunal fixou pode ler-se o seguinte:

11. Os pais deverão abster-se de divulgar fotografias ou informações que permitam identificar a filha nas redes sociais.

A mãe da menor, inconformada com a regulação arbitrada pelo tribunal, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, alegando, i. a., que a decisão de não permitir a divulgação de fotografias ou informações da menor carecia de fundamento de facto ou de direito. A Relação de Évora decidiu o recurso negando-lhe provimento e mantendo a regulação arbitrada pelo tribunal de S. No Acórdão, os desembargadores fundaram a sua decisão no dever dos pais de assegurarem o direito à imagem e à reserva da vida privada dos filhos, mais dizendo que «…os filhos não são coisas ou objectos pertencentes aos pais e de que estes podem dispor a seu belo prazer. São pessoas e consequentemente titulares de direitos.» Palavras ríspidas, mas certeiras.

No plano do direito, o Tribunal da Relação de Évora fundou-se, para manifestar a sua concordância com a regulação provisória recorrida na parte em que impede os progenitores de publicar fotografias e informações da menor nas redes sociais, nos artigos 79.º e 80.º do Código Civil, relativos ao direito à imagem e à reserva da intimidade da vida privada, no artigo 34.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e no artigo 3.º (b) da Convenção n.º 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Convenção do Conselho da Europa para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, na Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança e na Carta Social Europeia, além de em algumas normas europeias relativas à matéria. A Relação de Évora conclui dizendo que «…a imposição aos pais do dever de “abster-se de divulgar fotografias ou informações que permitam identificar a filha nas redes sociais” mostra-se adequada e proporcional à salvaguarda do direito à reserva da intimidade da vida privada e da protecção dos dados pessoais e sobretudo da segurança da menor no Ciberespaço.» Muito bem dito.

Agora que analisámos um Acórdão inteligente, vejamos o lado estúpido desta questão. Antes de mais: é uma estupidez publicar fotografias de crianças e menores no facebook. As fotografias digitais incluem dados, ao que se chama metadata ou informação EXIF, que inclui, não apenas as informações técnicas da fotografia, como a abertura, o tempo de exposição, a marca da câmara e da lente, o equilíbrio dos brancos ou o flash, mas também as coordenadas, já que muitas câmaras – e, sobretudo, os smartphones – fornecem as coordenadas do local onde foi tirada a fotografia através de GPS. Se um abusador se interessar por uma criança ou menor cuja fotografia viu no facebook, basta-lhe consultar os dados da imagem para ficar a saber a localização da potencial vítima. É evidente que há pessoas que, estouvadamente ou por simples ignorância, continuam a publicar fotografias de crianças a despeito de saberem – ou deverem saber – que esse comportamento não é seguro. Na verdade, o facebook pode ser uma espécie de cardápio para predadores sexuais e raptores. É incrível que haja pessoas que, pela frivolidade de mostrar as suas crianças aos «amigos» do facebook, ignorem ou menosprezem este perigo.

Outra manifestação da estupidez crassa dos utentes do facebook foi as reacções que este Acórdão suscitou. Há muitos que entendem a partir disto que agora é proibido publicar fotografias de crianças no facebook. Isto é um disparate, porque a) os tribunais não fazem lei, b) aquela não é uma proibição absoluta, mas a imposição de um dever, e c) os seus destinatários não são a comunidade, mas apenas os progenitores da menor (embora se possa extrair deste Acórdão um princípio geral), mas as pessoas que passam os dias no facebook são mesmo assim: afinal de contas, são as mesmas que ficaram apavoradas, como galinhas em alvoroço na capoeira diante do ataque de um lobo, quando surgiu a notícia da proposta de Regulamento sobre direitos de autor a que aludi aqui. Já disse, aqui no Número f/, que o facebook é um lugar onde as pessoas abdicam de 95% da sua inteligência; esta é mais uma prova de que tenho razão.

M. V. M.

Imagem: http://evoraviva.blogs.sapo.pt/

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